Paul B. Gandel, Richard N. Katz e Susan E. Metros.
Tradução: Moreno Barros
De forma crescente, o foco de atenção no ensino superior recai sobre os “três As”: acessibilidade [accessibility], disponibilidade financeira [affordability] e contabilidade [accountability]. Um dos problemas contínuos da chamada era do conhecimento, é o desequilíbrio entre a oferta de trabalhadores do conhecimento e a crescente demanda por seus serviços. Ainda, a urgência dos concernimentos de oferta-demanda frente à acessibilidade, disponibilidade financeira e contabilidade, desviou atenção para um quarto “A”: abundância.
Uma História de Escassez
A história do aprendizado humano pode talvez ser melhor descrita em termos de falta de abundância ou escassez. Antes da invenção da imprensa, aptidão literária e aprendizagem eram situadas a serviço das elites seculares ou eclesiásticas dominantes. Textos seculares e sacros eram copiados a mão e armazenados em palácios imperiais ou escritórios monásticos para proteção, longe dos olhares indagantes. A difusão do conhecimento em uma era de tal escassez era necessariamente lenta e altamente controlada. Acesso ao conhecimento e aprendizagem era mediado por privilégios e posições sociais; aptidão literária era limitada e racionada devido às tecnologias prevalecentes (cópias feitas à mão e iluminação dos manuscritos) e por causa do desejo de se instituir um controle social.
A complexidade do domínio (e taxação) dos estados-nação necessitava a expansão do acesso educacional em aspectos seculares, criando um ambiente condutível para a construção dos grandes universidades européias em Bologna, Pisa, Oxford, Cambridge e Paris. Ainda, o controle social não deveria ser sacrificado e o acesso continuaria confinado aos (segundos e terceiros) filhos da elite dominante.
A invenção da imprensa por Johann Gutenberg no Século XV favoreceu a aptidão literária (acesso), a democratização do conhecimento e conseqüentemente diminui a autoridade política da igreja e do estado na Europa. Entre outras coisas, ao impacto dessa invenção na política econômica de escassez é creditado o surgimento da Reforma Protestante. A propagação da aptidão literária, através do crescimento de especialistas e recursos informacionais, também contribuiu indiretamente para a Revolução Francesa, a Revolução Americana e a difusão da idéia de democracia política na Europa Ocidental e no Novo Mundo.
A história da educação superior ocidental desde a Revolução Francesa tem sido dominada por pelo menos sete influências da época:
1. O ideal Jeffersoniano que igualou educação superior com cidadania efetiva e a viabilização do sistema democrático de governo.
2. O Ato U.S. Morrill de 1862 garantindo espaço federal (terra) para os estados dos E.U.A. criarem universidades públicas que deveriam admitir gratuitamente estudantes para estudos das artes mecânicas (engenharia) e de agricultura (Canadá e alguns países europeus e do Commonwealth adotaram variações dessa legislação).
3. A criação do primeira universidade de pesquisa em Berlin (Humboldt University) e a replicação desse modelo nos Estados Unidos (Johns Hopkins University).
4. O movimento americano das faculdades comunitárias (community college).
5. A criação da “mega-versidade,” exemplificado pelo Universidade Aberta (Open University).
6. A bem sucedida capitalização privada-mercado, padronização e globalização da educação superior, exemplificada pela University of Phoenix.
7. A (parcialmente) bem sucedida integração de técnicas instrucionais online (síncronas e assíncronas) com a proliferação (controlada e descontrolada) de recursos online.
Todos esses desenvolvimentos refletem invenções e instituições que eram criadas para cultivar equilíbrio entre a oferta de especialização necessária para a promoção da prosperidade social e econômica e a demanda por tal especialização. O equilíbrio porém, provou ser ilusório já que a economia mundial gradativamente desloca-se da sua solidificação sobre fatores tradicionais de produção, como terra, trabalho e capital financeiro para solidificação sobre fatores renovados, como o capital intelectual.
Uma era de abundância informacional
Com a vasta proliferação de computadores, redes e informação interligada hoje, acesso à informação é (ou pode ser previsto para ser) relativamente fácil, barato, amplo e democrático. Claro, mesmo 3000 anos atrás, Rei Salomão nos alertou: “fazer muito livros não tem fim; e muito estudo causa fadiga da carne” (Eccl. 12:12). Os problemas nas primeiras décadas da era dirigida pelo conhecimento recaíam sobre uma nova abundância e um novo e talvez crescente desequilíbrio entre a matéria-prima da produção da aprendizagem (recursos informacionais) e os outros fatores da produção da aprendizagem (tutores, professores, ambientes de aprendizagem inteligentes, programas de aprendizagem assíncronos, técnicas mediadas online e afins). Além, a atual e prospectiva era da abundância informacional irá desafiar muitas suposições básicas e práticas sobre a salvaguarda, proteção, filtragem, preservação, avaliação, purificação, descrição, catalogação e tratamento da informação para propósitos educacionais, de aprendizagem e acadêmicos. Em particular, quatro fatores explicam porque esse problema de abundância informacional merece mais atenção aqui e agora.
Primeiro, a mudança de uma economia industrial para uma do conhecimento – mudança reconhecida em 1973 por Daniel Bell [1] — já começou e está acelerando velozmente. As economias de muitas nações pós-industriais são dominadas por (1) tecnologias de informação e telecomunicações; (2) serviços financeiros; (3) entretenimento, publicação, notícias e outras mídias; e (4) farmáco e biotecnologia. Para o seu sucesso, essas indústrias dependem não de trabalho ou terra mas sim de capital financeiro e intelectual. Elas são essencialmente indústrias do conhecimento – dependentes da aquisição e utilização de tecnologia de informação, de ter (ou restringir) acesso à informação correta no tempo correto e do gerenciamento do fluxo da informação.
Segundo, a economia da produção de semicondutores (e relacionados) deve forçar uma reavaliação dos conceitos de escassez e abundância. A Lei de Moore, que estabelece a duplicação da performance dos semicondutores a qualquer preço constante em um período de dezoito meses, tem sido validada no mercado comercial por mais de vinte anos. Além disso, numerosas “leis” relacionadas apontam para a duplicação da capacidade de armazenamento, banda e outros elementos da infraestrutura das tecnologias de informação. Em essência, um computador básico com significante armazenamento local agora custa não mais do que a ubíqua tv colorida. Acesso veloz à internet está amplamente disponível na maioria das cidades e em muitas faculdades e universidades com preços comparáveis ao serviço prêmio de televisão a cabo. Em suma, o custo de acesso a modernas ferramentas eletrônicas de aprendizagem provavelmente agora se compara favoravelmente ao custo de livros e gradativamente incluem os custos de alguns recursos licenciados como apostilas, telefones e televisões. Esses custos continuarão em declive (em relação à performance) dramaticamente.
Terceiro, integração informacional está se tornando a norma. Se os primeiros cinqüenta anos de computação na educação superior focaram no desenvolvimento unicamente e em sistemas institucionalizados para suporte de inumeráveis detalhes administrativos – como folha salarial, contabilidade de verbas e pagamentos, rastreamento de livros da biblioteca, inscrição individual em disciplinas – a próxima metade de século provavelmente será caracterizada pela padronização dessas aplicações, a integração dessas aplicações uma com as outras e a transição da atenção, invenção e investimentos para sistemas criados para ampliar a produtividade de aprendizagem e resultados. Desde 1997, faculdades e universidades dos Estados Unidos gastaram mais de $5 bilhões para modernizar e padronizar seus núcleos administrativos e sistemas de informação. Novas técnicas e padrões, como XML e serviços Web estão sendo investigados e distribuídos estrategicamente para alavancar as decisões em favor da padronização e da interoperabilidade. Dois terços das faculdades e universidades americanas já implementaram um ou mais sistemas de gerenciamento de curso (CMS – course management systems) para introduzir automação e padronização em favor da transferência de instrução. Novas e avançadas tecnologias e técnicas para armazenamento, exploração, análise e apresentação de dados e informação estão trazendo modalidades textuais, visuais, audíveis e outras em novos modelos. Além disso, revelações em animação, visualização científica, realidade virtual e simulação estão tornando possível para as pessoas interagir com informação em fundamentalmente novas maneiras.
Quarto, um princípio da era dirigida pelo conhecimento é que a educação é um esforço de uma vida inteira, algo que apenas ocasionalmente será mediada pelos artefatos “tradicionais” das experiências de aprendizagem históricas: lugares, professores, pares aprendizes com idades específicas, titulações e afins. A mudança da expectativa de uma idade específica para a experiência da aprendizagem para a expectativa de um esforço de aprendizagem de uma vida inteira já está remodelando o mercado para o ensino e a aprendizagem. Novas aplicações de resultados educacionais, novos marcadores de realizações educacionais, novos fornecedores de materiais educacionais, cursos, titulações e novos métodos de concessões institucionais estão aparecendo e evoluindo na escalada para mediar oferta e demanda para conhecimento e aprendizagem.
Um futuro de quase inimaginável abundância
Em diversas maneiras, os mercados de conhecimento e aprendizagem estão evoluindo como os mercados de alimentos. De uma perspectiva planetária, nós temos capacidade de produzir comida suficiente para sustentar a vida humana de maneira razoável. Os problemas de nutrição e fome mundial são relacionados mais a problemas de distribuição, políticas globais e econômicas e educação. Em relação à informação, conhecimento e aprendizagem, o futuro é de uma inimaginável abundância. Com o acesso a rede tornando-se mais veloz e mais amplo e com o custo do armazenamento eletrônico caindo cada vez mais, qualquer pessoa que desejar, será capaz de capturar, tornar visível, disseminar e preservar todos os momentos de sua vida. A capacidade de se criar um registro digital compreensivo de experiências de vida e trabalho tornará inovações anteriores, como publicações utilizando um microcomputador, parecerem erros contínuos.
O novo potencial irá influenciar imensamente condutas institucionais e individuais, expectativas e experiências. Antes da invenção da fotografia, por exemplo, apenas os ricos poderiam pagar para documentar sua existência, delegando uma pintura ou escultura. A invenção da fotografia permitiu pessoas comuns documentarem suas vidas. Hoje, televisão, webcams e telefones celulares gravam, armazenam e transmitem as trivialidades das vidas das pessoas. Weblogs, ou “blogs”, refletem antigas tentativas de se organizar experiências pessoais com o propósito do compartilhamento de experiências com outros. Na próxima década, gravar, armazenar e transmitir as trivialidades da vida será técnica e economicamente possível para qualquer pessoa. Tomar proveito dessa possibilidade será apenas uma questão de escolha.
Apesar de os benefícios educacionais de tal possibilidade poderem ser questionáveis, pouco se argumenta se essas capacidades estarão disponíveis ou se elas serão utilizadas. Estranhas desconsiderações sobre a capacidade das pessoas encontrarem utilidade para telefones ou PCs em casa ou em seu trabalho trazem a lembrança de Bill Gates, da Microsoft e Ken Olson, da Digital, com caráter quase humorístico. A Internet permaneceu por muito tempo como domínio dos tecnicistas – até que a Web se abriu para o meio para consumo popular.
As implicações educacionais de confusa abundância – ou seja, as capacidades quase infinitas individuais de gravação, armazenamento e transmissão – devem ser de fato discutidas com detalhe significante. Por exemplo, mais de 31 bilhões de e-mails são trocados todos os dias.[2] Mesmo que seja improvável que nós iremos transmitir com precisão (deixe administrar sozinho) as implicações – tanto institucionais e pedagógicas – de abundância massiva de informação, é incontestável que o impacto irá magnificar a reclamação do Rei Salomão para além da compreensão.
O gerenciamento de informação infinita
Economistas rapidamente irão relembrá-lo que “quase de graça” não é de graça. Qualquer pessoa que tem sido responsável pelo gerenciamento de um estoque de tecnologia em uma instituição, licenças de softwares, licenças de conteúdo em uma biblioteca e outros, rapidamente adicionará que apesar de os custos por MIPS, por mensagem transmitida, por gigabyte e por busca, terem diminuído consideravelmente, os custos totais de manter esse novo ambiente se elevaram ao mesmo passo. Discretamente, fornecedores de tecnologia para a educação superior estão discutindo quais serviços de tecnologia de informação e níveis de serviço devem manter. Alguns estão considerando o potencial de se oferecer serviços de e-mail para ex-alunos, pais e outros “acionistas” em adição aos atuais estudantes, servidores e professores. Clifford Lynch indica que a educação superior hoje possui a capacidade de tornar cursos “visíveis”, com mais e mais produção de materiais de curso em formato digital, e armazenados nos computadores institucionais.[3] MIT já deu o primeiro passo nessa direção oferecendo gratuitamente todos os seus materiais de curso através da iniciativa do OpenCourseWare (OCW – produto de curso aberto). A questão então se torna: quanto espaço em disco “quase grátis” deve ser alocado para os membros da comunidade, por quanto tempo e para quais propósitos?
Instituições estão se tornando cada vez mais sofisticadas em relação ao uso da informação que possuem e precisarão tornar-se melhor na modelagem, armazenamento, busca e disseminação dos dados. O potencial vazamento nuclear em Three Mile Island ilustra esse ponto. O vazamento quase ocorreu não porque faltava informação e sim porque os técnicos não atenderam à informação certa. Como Christopher Burns aponta, ”a crise em Three Mile Island dramaticamente ilustra como um desastre pode resultar se a quantidade de informação é utilizada como um substituto para a qualidade de informação”.[4] Similarmente, os trágicos eventos de 11 de setembro também ilustram, em parte, o problema do excesso de informação. Quase todos associados à investigação dos ataques terroristas concordam que a falha na prevenção dos ataques deveu-se não por causa de falta de informação de inteligência, mas por causa de uma falha no reconhecimento dessa informação, no isolamento dela do montante e da redundância de todas outras informações e agir sobre ela de maneira coordenada.
O embate de culturas entre as profissões de gerenciamento de dados em conseqüência, exacerba o desenvolvimento de estratégias institucionais efetivas para o gerenciamento informacional. Tecnologistas enxergam o problema sob a perspectiva da criação de grandes capacidades digitais para armazenamento ou a criação de melhores máquinas de busca. Bibliotecários geralmente focam na aquisição de informação publicada externamente à instituição. Além disso, os sistemas que bibliotecários criaram são construídos sobre preservação e escassez, não abundância. Arquivistas e gerenciadores de registros, por outro lado, são guiados a criar decisões sobre “o que é importante.” Entretanto, a extensão de suas responsabilidades é limitada a oficiais e, tipicamente, documentos em papel. Ainda, eles também focam nas evidenciais qualidades dos registros ao invés do conteúdo informacional dos registros – conteúdo que pode ser utilizado para decisões e ações.[5]
O complemento pessoal para o dilema do gerenciamento institucional de dados foi ricamente descrito por Russell L. Ackoff, mais de trinta e cinco anos atrás, em seu artigo “Gerenciando Sistemas de Desinformação”. Ackoff descobriu que estudantes a quem eram designados apenas resumos de artigos de periódicos obtiveram melhores resultados em exames, do que alunos que foram instruídos a ler os artigos por completo. Ackoff concluiu: “Eu não nego que a maioria dos gerentes (pessoas) não possui discernimento sobre a informação que eles deveriam possuir, mas eu nego que esse seja a deficiência informacional mais importante que eles sofrem. Me parece que eles sofrem de uma super abundância de informação irrelevante”.[6]
Criando limites: a ecologia do gerenciamento de informação
Informação, conhecimento e ciência envolvem mais do que apenas a coleção de bits dentre grandes armazéns de dados. O caráter social da informação – isto é, como a informação é utilizada – precisa se tornar essencial para a definição de programas [agendas] de gerenciamento de informação. Considerando que a informação pura da aprendizagem e da educação está sendo coletada em um surpreendente grau, também está sendo perdida ou tornada inutilizável em um grau ainda mais surpreendente. Conseqüentemente, nós precisamos fazer uma aproximação muito mais holística, uma que reconhece a interconexão de recursos informacionais e de indivíduos que criam e utilizam esses recursos. Uma metáfora que tem sido utilizada pra descrever essa aproximação holística é a visão de sistemas de informação como uma forma de ecossistema – uma ecologia informacional.
Bonnie Nardi e Vicki L. O’Day definem uma ecologia informacional como um sistema de “pessoas, práticas, valores e tecnologia em um ambiente particular local”.[7] Para Thomas Davenport, uma ecologia informacional coloca em seu centro, “como as pessoas criam, distribuem, compreendem e utilizam a informação”.[8] Ambas definições focam em atividades humanas – não em tecnologia – como o núcleo de um sistema informacional. A chave é capturar não simplesmente os dados e a informação mas as relações contextuais e significados que as pessoas dão para os dados e para a informação. Essas idéias podem ser comparadas com Vannevar Bush e sua famosa conceitualização do “memex”. Em 1945, Bush argumentou:
Nossa inaptidão em alcançar os registros é largamente causada pela artificialidade dos sistemas de indexação. Quando dados de qualquer tipo são inseridos em estoques, eles são classificados alfabética ou numericamente e a informação é encontrada (quando isso acontece) trilhando subclasses em subclasses. Isso pode ocorrer em apenas um local, a não ser que duplicatas sejam utilizadas; alguém deve conhecer as regras sobre como localizá-los, e as regras são difíceis de se assimilar. Encontrando um item, você deve emergir do sistema e reiniciar um novo caminho.
A mente humana não trabalha dessa maneira. Ela opera por associações. Com um item em sua possessão, move-se instantaneamente para o próximo que é sugerido pela sua associação de pensamentos, em acordo com algumas intrincadas redes de trilhos percorridos pelas células do cérebro.[9]
A idéia por trás da ecologia informacional é que os elementos básicos são escoamentos e ramificações (pense em escoamentos como condutores, fluxos e ramificações como estoques de informação) que são entrelaçados, com um crescendo sobre o outro. A dinâmica do escoamento e da ramificação não funciona por acaso, mas são determinadas pela interação de quatro dimensões: interdependência, mudança, tempo limite e diferenciação. Mais simples, uma ecologia informacional é um sistema de pessoas, práticas, valores e tecnologias em um ambiente particular. A palavra ecologia é importante aqui porque conduz o senso de urgência sobre a necessidade de ter controle dos sistemas informacionais – como Nardi e O’Day explicam, “para injetar nossos próprios valores e necessidades dentro deles para que nós não sejamos oprimidos por algumas de nossas ferramentas tecnológicas”.[10]
Como argumenta Bush, normalmente nós esperamos que a informação se adapte dentro de um sistema preordenado, da mesma maneira que livros se inserem no Sistema Decimal de Dewey. Tomar uma aproximação mais ecológica dos sistemas informacionais clama pelo foco, ao contrário, sobre a maneira como a informação é criada e utilizada. Em diversas circunstâncias, essa aproximação não é diferente daquela usada por arquivistas tradicionais. O arquivamento tradicional segue os princípios de proveniência e ordem original em armazéns de informação e dados. Proveniência refere-se mais sobre manter intactos o intento original, a ordem organizacional e a associação de pensamentos do criador e refletindo o contexto no qual a informação foi utilizada – em outras palavras, focar no criador individual e no usuário da informação.
Foco no indivíduo
Do mesmo modo que o estudo de sistemas ecológicos focam nos organismos individuais, talvez da mesma maneira a criação de sistemas informacionais deveria focar nos indivíduos que criam e utilizam a informação. Como funcionaria esse desenvolvimento? Primeiro, ele deveria estabelecer as necessidades individuais de informação. Por exemplo, instituições que estão começando a criar bibliotecas digitais e repositórios estão achando difícil encontrar professores que contribuam com documentos e outros materiais para esses repositórios. Parte do problema pode ser os rígidos esquemas organizacionais construídos para atender necessidades dispersas ou o fato de que repositórios centralizados estão removidos muito distantes do conforto das disciplinas matrizes do professor. O problema pode também ser que esses sistemas não foram desenvolvidos tendo em mente o gerenciamento de necessidades informacionais individuais. Pode ser irracional esperar que um professor ou um administrador da universidade crie uma super abundância de meta-etiquetas [meta-tags] especializadas para atender aos requerimentos de um repositório digital institucional, especialmente se essa atividade é separada das atividades que ele desenvolve criativa e academicamente. Por outro lado, e se aos indivíduos fossem disponibilizadas as ferramentas para facilitar a automação, criação, compartilhamento de bibliotecas digitais pessoais ou repositórios desenvolvidos para atender as necessidades de produtividade do acadêmico, administrador ou estudante – sistemas desenvolvidos para organizar e facilitar sua própria pesquisa, trabalho ou programas de aprendizagem?
Essas questões quase inevitavelmente levam à exploração de e-portfolios. Se um e-portfolio não é simplesmente uma coleção de materiais, mas uma coleção de matérias com um propósito, ele executa as funções associadas com arquivos pessoais. Ou seja, tal coleção, mentalizada e construída de acordo com as escolhas conscientes sobre o que reter e o que descartar, forma uma base de conhecimento sobre um indivíduo – um repositório que serve como um recipiente para coletar e sintetizar dados e informação na maneira que o indivíduo necessita e utiliza os dados e a informação. Considerando que o termo e-portfolio ou sistema de gerenciamento de conteúdo [content management system] poderia ser usado para descrever tal sistema de informação pessoal, depositório pessoal digital é um termo muito mais apropriado porque reflete o propósito específico de tal sistema. Um repositório pesoal digital começa a preencher a profetização de Bush sobre o memex: “um aparelho no qual o indivíduo armazena todos os seus livros, registros e comunicações e que é mecanizado para que possa ser consultado com velocidade excedente e flexibilidade. É um largo íntimo suplemento para sua memória”.[11]
Repositórios pessoais digitais oferecem intrigantes possibilidades de trazer consigo conhecimentos e culturas individuais coletadas ao longo do tempo e que poderão ser compartilhadas com outros. Imagine se pesquisadores pudessem ter acesso não somente aos escritos pessoais de Albert Einstein, publicados e não publicados, mas também todos as outras escrituras que ele coletou ao longo dos anos e utilizou como base para formação de suas próprias idéias. Além disso, imagine se pesquisadores pudessem também trilhar as relações contextuais e referências que Einstein criou sobre todos esses materiais. Seria como olhar sobre os ombros de um grande pensador, seguindo a evolução do seu processo de pensamento ao longo do tempo através da exploração de seu estoque pessoal de conhecimento.
Por outro lado, por anos CIOs têm trabalhado diligentemente para eliminar sistemas “sombras”, para que toda a informação possa ser mantida em repositórios centralizados e padronizados. Encorajar o desenvolvimento de repositórios pessoais digitais pode requerer uma mudança em nosso foco estratégico. Também levanta inúmeras questões. Qual papel, se algum, a comunidade deve exercer na articulação e imposição de padrões relacionados a tais repositórios ou arquivos? Quais custos a instituição deve incorrer para suportá-los? Que direitos de acesso ou propriedade as instituições devem receber ou conceder a esses repositórios? Essas questões de policiamento nem mesmo passeiam sobre a superfície de outros inumeráveis, mais práticas questões, como os padrões de autenticidade para informação digital em repositórios.
Criando repositórios institucionais do fundo
Apesar do medo de que repositórios digitais pessoais possam se transformar em silos isolados de informação ser certamente real, um cenário bem diferente pode ser visionado. Recentes desenvolvimentos como Weblogs e tecnologia P2P demonstram que é possível construir estoques de conhecimento compartilháveis do fundo [from the bottom up – do mais improvável, mais distante, com menos recursos]. Utilizando modelos interligados baseados em compartilhamento conjunto e recursos controlados, repositórios pessoais digitais podem ser vistos como os tijolos para a criação de armazéns de conhecimento coletivos para grupos de afinidade e organizações – comunidades de prática. Esses grupos auto-governados podem desenvolver uma série de práticas padronizadas e aproximações para a construção ao longo do tempo de repositórios coletivos surgidos de repositórios individuais. As táticas para a coleta desses recursos agregados poderiam ser focadas em como as organizações e grupos utilizam esses recursos informacionais. E como na comunidade acadêmica e ambiente de trabalho, revisão por pares e pressão por pares poderia servir como mecanismos para separação do trigo do debulho nesses repositórios coletivos.
Essa aproximação orgânica de se construir repositórios organizacionais digitais do fundo se aproxima da aproximação ecológica advogada por Davenport para repositórios informacionais institucionais. Davenport nota: “Uma aproximação centralizada altamente engenhosa ao vasto volume de informação é claramente insustentável. Mesmo os mais bem armazenados registros não possuem valor a não ser que sejam efetivamente utilizados. Estratégias de gerenciamento de informação que faz de cada empregado um gerenciador parece ser a única alternativa viável”.[12]
Para facilitar a navegação através da rede de repositórios digitais pessoais e coletivos, meta-ferramentas podem ser desenvolvidas na mesma relação dos serviços Web. Isto é, meta-ferramentas podem permitir que os repositórios de informação “façam propaganda” da sua disponibilidade, da mesma maneira que arquivistas desenvolvem ferramentas para descrever suas coleções.
Essas ferramentas podem incluir o seguinte: um guia de repositório, que sumariza as propriedades; auxiliares de busca, que detalham o conteúdo; e um índice, que complementa a proveniência ou organização como um auxiliar na identificação de partes relevantes da coleção. Justas, essas ferramentas poderiam trabalhar para fornecer tanto uma ampla, visão geral do material e apontar a partes específicas da coleção. Exemplos de como tais descobertas e ferramentas de navegação podem funcionar podem ser encontradas no mundo dos Weblogs. Blogueiros estão utilizando RSS (Rich Site Summary/Sumário Rico de Site ou algumas vezes, Really Simple Syndication/Sindicação Bem Simples) — um formato XML super leve originalmente concebido para sindicar [em inglês, syndicate, por definição, associação de pessoas ou firmas, sindicato de trabalhadores, também representa uma agência que vende artigos e fotografias para publicação simultânea em um número de jornais ou periódicos.] notícias e entradas de sites que disponibilizam conteúdo constantemente atualizado – em maneiras imaginativas de se compartilhar notícias e informação e para notificar outros blogs de novas atividades.
Implementando um coletivo informacional
Se repositórios digitais podem ser construídos do fundo como parte de um processo coletivo de gerenciamento de registros individuais e criação do conhecimento, mais questões surgem. Onde toda essa informação irá residir? Como os repositórios serão interligados [linked]? Uma forma especial de armazenamento de dados seria necessária, uma que poderia fornecer um endereço eletrônico permanente para a coleção de bits digitais e fazer valer o repositório independente da sua localização física. Em outras palavras, poderia servir como uma “caçamba arquivística eletrônica.” Localizações eletrônicas permanentes poderiam também facilitar a criação de links entre os repositórios. Dentre as caçambas, múltiplos formatos e múltiplos esquemas organizacionais internos deveriam ser suportados.
Trabalho em tais sistemas para o armazenamento permanente de registros arquivísticos digitais já encontra-se em prática. O sistema de bibliotecas digitais Dspace desenvolvido pelo MIT e pela HP e o Flexible Extensible Digital Object and Repository Architecture Project [Projeto Fedora], fundedo pela Andrew W. Mellon Foundation e desenvolvido conjuntamente pelas University of Virginia e Cornell University, são dois exemplos. O projeto VUE em Tufts demonstra que é possível construir ferramentas e padrões que permitem o compartilhamento de informação, bem como o mapeamento contextual associado da informação, através da estrutura de um repositório digital. As Digital Library Initiatives, fundadas pela National Science Foundation (NSF), estão trabalhando na construção de ambientes de conhecimento onipresentes para a criação, disseminação e preservação do conhecimento científico e de engenharia.
Em adição, novas tecnologias têm surgido para resolver os problemas de como armazenar e acessar essas vastas coleções de bens digitais. Uma dessas tecnologias é o Webdisk, baseado em uma tecnologia chamada WebDAV. Webdisk fornece aos usuários um meio flexível, fácil e sem custo de fazer upload e download de arquivos de um servidor remoto. Permite que um “disco” monte em qualquer computador conectado à internet rodando o software requerido e ser configurado como um drive de disco local, uma rede local, ou um sistema de arquivos montado. Esses mesmos adventos técnicos podem ser úteis na criação de uma rede completa de repositórios individuais e coletivos, criando o escoamento e ramificações necessários para um sistema ecológico efetivo e vibrante de compartilhamento de informação e conhecimento e ciência individuais.
Compreendendo os novos papéis do profissional da informação
Claramente, em um mundo de sistemas de informação conectados consistindo de repositórios digitais individuais e coletivos, os papéis dos especialistas em informação e tecnologia precisam mudar. Tecnologistas precisam estabelecer um plano de sistemas mais transparente para a convergência de sistemas e para a convergência de tipos informacionais. Designers instrucionais precisarão dar suporte e educar a comunidade acadêmica sobre os benefícios de se acumular e compartilhar bens digitais e objetos de aprendizagem. Bibliotecários terão um menor papel na organização de materiais em acordo com rígidos padrões e um maior papel no desenvolvimento de princípios organizacionais mais flexíveis para uma vasta variedade de materiais construídos sobre uma gama de diretrizes padronizadas. O foco dos bibliotecários será menor na organização de materiais e maior no ensinamento de outros sobre como organizar os materiais que produzem.
Os papéis dos gerenciadores de registros serão definidos em termos dos tipos de materiais coletados, a política informacional geral da organização e as necessidades dos indivíduos dentro da organização. Arquivistas provavelmente continuarão a servir como os residentes informacionais éticos e pastorar aqueles escoamentos e ramificações que servem à construção de registros históricos significativos. Editores obterão sucesso apenas se eles tomarem proveito dos novos modelos de disseminação ao invés de continuar com a visão corrente de propriedade de conteúdo. Editores precisaram buscar novas maneiras de adicionar valor, por exemplo, googlizar coleções de bens digitais ou resumir e sumarizar bibliotecas-chave dentre uma comunidade de prática. Finalmente, CIOs precisão se transformar nos coordenadores-chefe da informação dentro de uma organização – estabelecendo padrões e diretrizes baseadas na entrada de informação e fornecer as ferramentas que permitirão indivíduos a construir e compartilhar repositórios pessoais de informação.
Novas posições surgirão como papéis obsoletos no ambiente dos repositórios digitais interconectados. Arquitetos da informação e designers de interfaces ganharão notoriedade com a demanda crescente por suas habilidades e talentos. Adicionado a esse gênero de trabalhadores serão os construtores de cursos de iniciação e meta-etiquetadores (não muito distantes dos perfuradores de cartão do passado). E quebradores do conhecimento profissional e estrategistas irão auxiliar seus clientes a assegurar os corretos tipos de informação e peneirar e navegar através das densas coleções de informação e conhecimento.
Conclusão: Memex Redux
A idéia de se criar um sistema compartilhado de sistemas informacionais individuais interconectados capaz de formar uma rede de compartilhamento de conhecimento e ciência, é a culminação da visão criada mais de meio século atrás pó Vannevar Bush. Da estação de trabalho do acadêmico ao hypertexto e a world wide web, a visão de Bush tem sido um guia metafórico para desenvolvimentos tecnológicos na educação. Repositórios pessoais digitais, interligados e facilmente compartilhados, poderia ser o passo final na realização da visão de Bush. Para Bush, a resposta para a explosão informacional era o memex, a “mecanizada biblioteca e arquivo particular” de um acadêmico – em outras palavras, um repositório pessoal digital. De acordo com Bush, o memex de um acadêmico poderia em troca ser ligado a uma rede de acadêmicos de forma que um pudesse passar informações para que “um amigo insira no seu próprio memex, de lá a ser ligado na trilha mais geral”.[13] Hoje essa trilha aponta para o eficiente gerenciamento de informação, começando com o indivíduo e terminando com o coletivo conhecimento e ciência.
Até pouco tempo, a escassez de informação e a maneira como se gerenciava a escassez teria sido um caráter definidor da história humana. Ordens políticas e sociais descansam na fundação da escassez e nossos sistemas de gerenciamento têm sido configurados largamente para racionamento, conservação e otimização do uso dos recursos escassos. Com as redes globais elevando as interconexões entre pessoas, instituições e conhecimento e os custos em declive tornam mais baratos a retenção de recursos de informação do que gerenciá-los da maneira atual, o modelo corrente tende a quebrar e se dissipar.
Novamente nós aprendemos que inteligência centralizada, em sua longa jornada, falha no embate com a insurgente complexidade. A emergente abundância de tecnologia de informação e recursos sugere a real (e presente) necessidade de se explorar uma arquitetura de informação fundamentalmente nova que descansa sobre a premissa que indivíduos, não instituições, se tornarão o lócus gerencial responsável pelas informações referentes a eles. A abundância trabalha em nosso favor permitindo a criação de informações comuns gerenciadas coletivamente ao redor do mundo. No senso mais verdadeiro, nossas instituições poderão então se tornar portais, ou talvez mais adaptáveis, espaços vagos onde alunos, servidores, professores e outras informações pessoais são estacionados. Talvez então, muito estudo não causará necessariamente a “fadiga da carne”.
Notas
Uma versão anterior desse artigo apareceu em Journal of Asynchronous Learning Networks, vol. 8, no. 1 (February 2004), http://www.sloan-c.org/publications/jaln/.
[1] Daniel Bell, The Coming of Post-Industrial Society: A Venture in Social Forecasting (New York: Basic Books, 1973).
[2] Peter Lyman and Hal R. Varian, “How Much Information? 2003,” Web site, http://www.sims.berkeley.edu/research/projects/how-much-info-2003/ (accessed November 7, 2003).
[3]. Clifford Lynch, “Life after Graduation Day: Beyond the Academy’s Digital Walls,” EDUCAUSE Review, vol. 38, no. 5 (September/October 2003): 12-13, http://www.educause.edu/ir/library/pdf/erm0356.pdf (accessed November 7, 2003).
[4] Christopher Burns, “Three Mile Island: The Information Meltdown,” in Forest W. Horton Jr. and Dennis Lewis, eds., Great Information Disasters: Twelve Prime Examples of How Information Mismanagement Let to Human Misery, Political Misfortune, and Business Failure (London: Aslib, 1991), 54.
[5] Sue Myburgh, “Strategic Information Management: Understanding a New Reality,” Information Management Journal, vol. 36, no. 1 (January/February 2002): 36–38, 42–43.
[6] Russell L. Ackoff, “Management Misinformation Systems,” Management Sciences, vol. 14, no. 4 (1967): B147.
[7] Bonnie A. Nardi and Vicki L. O’Day, Information Ecologies: Using Technology with Heart (Cambridge: MIT Press, 1999), 49.
[8] Thomas H. Davenport, Information Ecology: Mastering the Information and Knowledge Environment (New York: Oxford University Press, 1997), 5.
[9] Vannevar Bush, “As We May Think,” Atlantic Monthly 176 (July 1945): 101–8,
http://www.theatlantic.com/unbound/flashbks/computer/bushf.htm (accessed November 7, 2003).
[10] Nardi and O’Day, Information Ecologies, 56.
[11] Bush, “As We May Think.”
[12] Davenport, Information Ecology, 20.
[13] Bush, “As We May Think.”
Paul B. Gandel Paul B. Gandel, Ph.D. Vice Presidente de Tecnologia de Informação, professor de Estudos de Informação, Serviços de Computação e Mídia da Syracuse University. Richard N. Katz é Vice-Presidente da EDUCAUSE. Susan E. Metros é professora de Tecnologia de Design, empossada CIO, e diretora executiva para eLearning na Ohio State University.
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O artigo original foi publicado em:
EDUCAUSE Review, vol. 39, no. 2 (March/April 2004): 40-51. Traduzido e reproduzido com permissão dos autores. Uma versão anterior do artigo encontra-se no Journal of Asynchonous Learning Networks, vol. 8, no. 1 (February 2004).